sexta-feira, 14 de agosto de 2009

POR FALAR EM DEMOCRACIA

POR FALAR EM DEMOCRACIA
Excelente o texto do Jornalista, Escritor e Deputado Federal (PT-BA) Emiliano José que li no blog "O Terror do Nordeste". Vai naíntegra abaixo:

Crise, democracia e política



Os acontecimentos envolvendo o Senado brasileiro têm provocado uma discussão, por vezes surda, sobre a democracia representativa e sobre a política de modo geral. A crise do Senado, no entanto, me parece apenas a ponta do iceberg de um fenômeno político-cultural mais amplo. Espraia-se, desde algum tempo, em algumas camadas sociais, inclusive em parcelas da intelectualidade, um acentuado nihilismo, um descrédito aberto em relação à atividade política, e um desprezo profundo pela democracia representativa, alcançando claramente a figura do parlamentar de modo geral. Acentua-se um perigoso silêncio dos intelectuais, como se repudiassem a política, como se nada tivessem a ver com o mundo.

Não considero que isso deva ser tratado de modo simplista. Há razões para o descrédito. A democracia representativa enfrenta uma crise acentuada em todo o mundo. Mesmo que se argumente em seu favor o fato de as eleições periódicas terem a condição de renovar os mandatos, o problema está no interregno, quando ocorre um claro distanciamento entre os parlamentos e a população que eles representam ou deveriam representar. Esse distanciamento pode dar a impressão às casas parlamentares de não serem devidamente vigiadas e, com isso, muitas delas passam a confundir claramente os territórios do público e do privado.

Acreditar ou defender o segredo como possibilidade da atividade pública é algo que não deve existir na atividade política, muito menos numa sociedade midiática como a que vivemos de há muito. A abertura da caixa de Pandora do Senado é uma evidência disso. Tudo acaba vindo à tona, e é bom que venha. A atividade legislativa, mais do que as outras, vive sob os holofotes da mídia que, de alguma forma, disputa a hegemonia da sociedade, mesmo que não tenha mandato para tanto.

Ao tratar da crise, a mídia, com sua notória posição política, destaca alguns problemas, silencia sobre outros, a seu exclusivo critério. Realça os defeitos de alguns personagens, esconde os de outros. Isso, na crise do Senado, parece evidente. Cada revelação sobre desvio do dinheiro público, no entanto, para além da evidente parcialidade da mídia, deveria reiterar o ensinamento de que a política deve ser feita sempre à luz do dia, que o representante deveria ter sempre em mente aquele que o elegeu. Infelizmente, nem sempre é assim.

A sociedade civil, no entanto, tem suas responsabilidades. Tem que aumentar sua participação na vida política, buscar os mecanismos de intervenção direta, acompanhar a vida política dos parlamentares, pressionar em favor daquilo que considera correto. Não há saída fora da política. E nos dias que correm é necessário combinar a democracia representativa, majoritária nas sociedades complexas que vivemos, com a democracia direta, que ainda permanece embrionária, e que encontra muitas dificuldades para se viabilizar. É necessário contribuir para uma democracia representativa que seja capaz de fato de representar os cidadãos e cidadãs que a tornam possível como, também, desenvolver os mecanismos de participação direta das pessoas na vida política do país.

Essa reflexão deve ocupar tanto a sociedade civil quando os que estão à frente das instituições sob o Estado democrático. O professor da Universidade Federal do Paraná, André Duarte, no ensaio crítico sobre o livro de Hannah Arendt Sobre a violência, editado como apêndice da publicação, sustenta que para que a própria legitimidade do poder constituído não se desgaste “é preciso que o espírito ou o princípio que presidiu à fundação do corpo político possa ser renovado cotidianamente por meio da participação política ativa dos cidadãos, aspecto muitas vezes truncado pelo sistema representativo, centrado na burocracia partidária”.

Como se vê, um puxão de orelhas na sociedade civil e nos partidos políticos, que muitas vezes não se dão conta de sua responsabilidade nas crises políticas. O livro é editado pela Civilização Brasileira, e é de 2009.

Já foi o tempo em que a política estava na ponta do fuzil. Ao menos para a situação que vivemos hoje no Brasil. Esquerda e direita disputam a hegemonia da sociedade sob o Estado democrático. Vamos consolidando a democracia no Brasil, mesmo que às vezes por tortuosos caminhos. Mesmo a derrota que impusemos à ditadura não foi decorrência direta de nossa opção pela luta armada – ao dizer nossa não o faço pretendendo que a sociedade brasileira tenha feito aquela opção. Refiro-me aqui às organizações de esquerda que optaram pelo enfrentamento armado à ditadura militar.

Diria que então desconhecíamos a visão gramsciana da luta constante, cotidiana pela hegemonia da sociedade. Ainda estávamos envolvidos pela idéia do assalto ao Palácio de Inverno, pelo debraysmo, pela teoria do foco ou da guerra popular. A luta armada aparecia como uma solução mágica. Fomos massacrados, literalmente massacrados, com centenas de assassinatos por parte da ditadura, torturas, desaparecimentos. Foi um aprendizado regado a sangue.

Derrotamos a ditadura por conta das amplas mobilizações de massa, por conta da constituição de uma poderosa sociedade civil, que emergiu no próprio período ditatorial como decorrência de a ditadura não ter conseguido consistir-se num regime que mobilizasse as massas, como o fez, por exemplo, o nazismo, na Alemanha, e o fascismo na Itália.

Não há como negar a importância da derrota da ditadura. Com isso, iniciamos um virtuoso período democrático, o mais longo de nossa história, é importante registrar. Por isso, é fundamental valorizar esses 24 anos de democracia. E lutar para que nenhuma ditadura abra suas asas sombrias sobre o povo brasileiro. Repudio sempre qualquer lamento face à democracia. Creio que devamos render homenagens a todos os que tombaram na luta contra a ditadura. Foram eles que garantiram esse tempo que vivemos, onde a divergência é possível, onde os mais diversos pensamentos convivem, onde a disputa pela hegemonia da sociedade é feita à luz do dia e sob o Estado democrático.

Por tudo isso, insisto que o nihilismo, a pretensão de permanecer à margem resmungando sobre os desacertos da política, não resolve nada, e constitui, a seu modo, uma posição política, mesmo negada. Tal posição só ajuda os que fazem da política um meio de vida. E favorece aos piores, aos que relativizam os princípios, aos que cultivam projetos conservadores para o Brasil. A política, tenho insistido, é o reino da civilização, é o oposto à barbárie, é o território do convívio dos diferentes, o terreno da democracia em seu sentido profundo.

Para além da crise do Senado, para além da criação midiática de uma CPI da Petrobrás que pretende antecipar a disputa eleitoral e desgastar o governo Lula; para além da posição política que sustento, e não posso esconder, de defesa de um terceiro mandato para um projeto político voltado à revolução democrática em nosso País; para além de sustentar politicamente a candidatura da ministra Dilma Roussef considero que o essencial é a defesa da democracia. Sustentar a essencialidade da democracia, a sua natureza universal, à Carlos Nelson Coutinho, talvez o mais consistente teórico dessa posição, não por acaso também o mais brilhante intelectual gramsciano do País.

Não podemos fazer do contingente o essencial. Que se deva enfrentar politicamente a crise do Senado, não há dúvida. Mas não se pode e não se deve fazer dela um instrumento para desacreditar a vida democrática. Tal crise deve servir, aí sim, para extrair lições que nos permitam consolidar ainda mais a democracia e as instituições que a sustentam. E para tanto, será necessário envolver-se mais e mais na vida política, e não o contrário. Envolver-se profundamente até para mudar as instituições. Para fazê-las avançar, torná-las mais e mais permeáveis às reivindicações da sociedade. Temos que reafirmar, à Hannah Arendt, a dignidade da política. Temos que lutar pela afirmação da política. Para, com ela, mudar o mundo.

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